Sabia escrever, tinha consistência intelectual. À universidade, difícil de chegar devido à conjuntura prussiana, bastante autoritária, não obstante já doutor.

Início de 1842, tinha pouco mais de 23 anos. Escreve um primeiro texto e o envia ao amigo Arnold Ruge, do “Clube dos Doutores”, agrupamento reunindo jovens hegelianos, liderado por Bruno Bauer.

O texto levava o título “Observações sobre o mais recente decreto prussiano sobre a censura”. Ruge, editor de jornais, só consegue publicar o artigo em 1843, assinado por “um renano”.

Dura crítica à lei de imprensa apresentada pelo rei Guilherme IV. Duvida da racionalidade da censura como instrumento estatal de controle. A censura, dirá no artigo, é inequivocamente danosa. O único remédio seria a supressão dela: em essência, um instituto mau.

Vinha de namoro com o jornalismo havia tempo. Primeiro passo, em setembro de 1841, quando incorporou-se ao projeto Gazeta Renana.

Jornal começa a circular em janeiro de 1842 em Colônia, dinâmico centro econômico e político da Renânia. Contava com uma burguesia liberal, a pretender fazer do periódico um órgão de defesa dos interesses dela, contra a política agrária e reacionária do governo prussiano.

Com a Gazeta Renana, Marx inicia colaboração regular somente em maio de 1842. Escreve sobre os Debates da Sexta Dieta Renana, realizada em Dusseldorf, de maio a julho de 1841. A Dieta Renana, como as demais dietas prussianas, era um simulacro de parlamento, hegemonizada pelos grandes proprietários fundiários.

Deu ênfase, no texto, à liberdade de imprensa, e o editor resolveu dividi-lo em várias matérias. Ocupou seis edições do Gazeta Renana, em maio de 1842. A partir daí, passa a escrever regularmente para o jornal. Produz matérias sobre o conflito entre o arcebispo de Colônia e o governo, sobre o divórcio, furto de madeira pelos camponeses – na verdade, criminalização da coleta de madeira –, miséria dos vinhateiros de Mosela, entre tantas outras.

Com isso, ganha contrato de colaboração regular, com renda anual nada desprezível. Em outubro de 1842, fixa-se em Colônia e em seguida, tal a repercussão do trabalho dele, torna-se redator-chefe do Gazeta Renana. Revela-se.

Parecia jornalista experimentado. Age com critério e rigor na seleção dos textos a serem publicados. Nada de elucubrações filosóficas. Dá valor a matérias de cunho local e regional, não obstante não reduza o jornal a questões provincianas. A atualidade alemã era a ênfase dele, isso não se pode ignorar.

Não se fizesse nada sem pesquisa, sem profundidade. Não gostava de análises rasas. Barrou, por exemplo, tentativas dos jovens hegelianos de valer-se do jornal para tematizar ideias socialistas – tais ideias, se pertinentes na conjuntura francesa, não deviam ser contrabandeadas para o jornal sem um tratamento adequado.

Marx parecia dar recados: amigos, amigos; o jornal, à parte. Quisessem debater o comunismo, se empenhassem num tratamento profundo. Nada de superficialidade.

Ganhará, no século seguinte, honroso elogio de Lukács. O notável comunista e intelectual húngaro definirá o período da presença de Marx na direção editorial do Gazeta Renana como “o momento mais alto do jornalismo democrático-burguês alemão”.

À frente do jornal, garantiu uma política corajosa e coerente de oposição ao governo prussiano, mostrando-se irredutível na defesa da liberdade de imprensa.

Ninguém se iluda: em nenhum momento, deixou se levar por confrontos aventureiros e irresponsáveis com o Estado prussiano.

As denúncias, as críticas duras às medidas antidemocráticas, feitas com rigor, com muita pesquisa. Simultaneamente, não deixava de enfrentar e desmistificar a postura servil da imprensa oficialesca. Movia-se no marco ideológico e político democrático-burguês. Porém, não reduzia a atuação dele aos limites liberais. Radicalizava a componente democrática.

Tinha de compatibilizar a orientação imprimida ao jornal com os interesses dos liberais renanos. Caminhava no fio da navalha. O essencial para ele: manter o Gazeta Renana como órgão de oposição, não obstante as dificuldades impostas pelo governo, incluindo os constrangimentos da censura.

Conseguiu transformar o jornal num veículo importante da imprensa alemã. Quando assumiu o comando, em outubro de 1842, o número de assinantes chegava a oitocentos. Em novembro do mesmo ano, era superior ao dobro: 1.800. E no fim de dezembro, 3.400 assinaturas, suficientes para garantir o equilíbrio da empresa.

O jornal tornava-se referência para a oposição liberal, contínua preocupação para o regime do rei Frederico Guilherme IV.

Ganha prestígio e fama entre os jovens hegelianos, entre os intelectuais radicais de toda a Europa central. Deixava de ser apenas o protegido de Bruno Bauer, como visto durante algum tempo, e se tornava autor corajoso e polemista de mérito próprio.

Um segundo público, as autoridades prussianas, aqui por agitador subversivo, sujeito sempre a perseguições e opressão. Marx e o reino da Prússia tornaram-se inimigos figadais, situação a persistir até a morte dele.

E por último, Marx conquista amplo e sólido reconhecimento entre os influentes habitantes de Colônia, metrópole da Renânia. Reconhecimento não somente dos nascentes comunistas ou dos republicanos radicais. O prestígio alcançava também líderes moderados, profissionais respeitados, comerciantes, banqueiros e membros da Câmara de Comércio.

Mais tarde, em 1845, quando obrigado a deixar Paris, sem um tostão furado, recebe ajuda de amigos e admiradores de Colônia, vaquinha a lhe garantir por algum tempo a vida em Bruxelas.

A censura era diária, no jornal.

Deixava-o à beira de um ataque de nervos.

Barra pesou, a ponto de envolver o czar Nicolau I, imperador da Rússia.

Gazeta Renana havia publicado matéria criticando o czar.

Nicolau I chama o embaixador prussiano em Petersburgo pra uma conversa. Exige: controlem a imprensa liberal de vocês. Gota d´água: Frederico Guilherme IV decreta o fechamento do jornal. Tinha até março de 1843 para o encerramento completo das atividades.

Em 12 de fevereiro, assembleia de acionistas do Gazeta Renana rende-se covardemente à ordem autoritária.

Marx, indignado e decepcionado, despede-se do jornal e do público dele, denunciando a censura, numa breve declaração, de 17 de março de 1843. Nem ano completou como redator-chefe: de outubro de 1842 a março de 1843.

A curta experiência o fez aproximar-se das condições materiais de existência, ao escrever sobre questões econômicas da Renânia. Sentiu-se pouco consistente quanto aos fundamentos econômicos. Deu de cara com as limitações do liberalismo burguês, manifestadas nitidamente no recuo covarde diante da ofensiva final contra a Gazeta Renana.

De profundo senso autocrítico, concluía, ao fim dela, ter profundas limitações. Quisesse prosseguir como intelectual disposto a participar das lutas sociais, teria de estudar com afinco e método.

A prática jornalística escancarou o despreparo dele para apreender a vida social num registro teórico rigoroso, capaz de lhe fornecer os instrumentos para agir de modo coerente e consequente. Era preciso qualificar-se teoricamente.

O fim do Gazeta Renana não o surpreendeu. À frente do jornal quase chega à exaustão. Em carta a Arnold Ruge, confessava: “É doloroso realizar uma tarefa servil, mesmo a serviço da liberdade, e lutar a golpes de alfinete em lugar de combater a cacetadas”.

Comeu o pão que o diabo amassou: “Cansei de hipocrisia, da estupidez¸ da autoridade brutal e também de minhas reverência obsequiosas, de andar com rodeios, das contorções e dos verbalismos”.

E conclui: “O governo devolveu minha liberdade”.

Estímulo à pesquisa e reflexão – foi como ele viu o fim da experiência no Gazeta Renana. Hora de deixar a cena pública e recolher-se ao gabinete de estudos.

O jornalismo teve importância para Marx. Tivesse sido tão somente uma espécie de acicate no espírito para aproximá-lo às questões econômicas e sociais, seria muito. Mas foi mais. Mexeu também com a concepção de Estado derivada de Hegel, e ele se vê levado a estudar na sequência os conflitos e contradições de classe.

Ia nascendo o Marx da economia política. Claro, não é possível reduzir o jornalismo de Marx ao Gazeta Renana. Colaborou inúmeras vezes com a imprensa mundial. E ao alçar voos teóricos impressionantes a ponto de tornar-se um dos maiores pensadores da humanidade, aquele a desvendar os segredos do capitalismo e a pensar a revolução, nunca deixou de ser jornalista.

Os textos dele carregam lições do período da Gazeta Renana, inegavelmente. Pela vivacidade, clareza, interesse em falar para o grande público. Nunca se pedirá dele, porque impossível, qualquer imparcialidade, mito do jornalismo contemporâneo. Tem posição, sempre.

A prática jornalística o ensinou, precisasse, a levar as coisas a sério, a ter muito rigor na pesquisa, a desenvolver a busca permanente de elementos da realidade para defender qualquer posição.

Ele sempre andou atrás dos fatos, acompanhava a história com rigor, procedimento-padrão de qualquer jornalismo sério. Sempre fez jornalismo de combate, sem superficialidade.

Viva o jornalismo de combate!

Referência

NETTO, José Paulo, 1947. Karl Marx: uma biografia/José Paulo Netto, 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros